26 março 2006
Mais uma do cotidiano
Rubem Braga é um cronista extraordinário. Vejam que pérola ele conseguiu escrever, narrando um fato cotidiano:
Recado ao Senhor 903
“Vizinho,
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito a repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor; é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21h45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois as 8h15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará ate o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada: e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
[...] Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou’. E o outro respondesse: ‘Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.”
(Rubem Braga. "Para gostar de ler". São Paulo: Ática, 1991)
Abraços...Marcelo
Recado ao Senhor 903
“Vizinho,
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito a repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor; é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21h45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois as 8h15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará ate o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada: e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
[...] Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou’. E o outro respondesse: ‘Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.”
(Rubem Braga. "Para gostar de ler". São Paulo: Ática, 1991)
Abraços...Marcelo
Comments:
<< Home
Oi Marcelo,
o texto é muito bom e fiquei com uma vontade inquieta de escrever sobre" minhas descobertas" aqui do prédio. Tenho aprendido muito nestes seis anos de convivência, acho que vou escrever um " Manual de descobertas para se viver bem no condominio". O que achas?
beijo da Ritinha
o texto é muito bom e fiquei com uma vontade inquieta de escrever sobre" minhas descobertas" aqui do prédio. Tenho aprendido muito nestes seis anos de convivência, acho que vou escrever um " Manual de descobertas para se viver bem no condominio". O que achas?
beijo da Ritinha
Oi Ritinha
Acho ótimo. E já vou sugerindo que no blog vá escrevendo suas experiências aos poucos, prá gente ir aprendendo e fixando o conhecimento.
Abraços...Marcelo
Acho ótimo. E já vou sugerindo que no blog vá escrevendo suas experiências aos poucos, prá gente ir aprendendo e fixando o conhecimento.
Abraços...Marcelo
Oi Marcelo
Seu blog tá ficando cada vez mais com um visual melhor.
Parabéns pelas modificações!!!
Muito bom o texto sobre vizinhança e convivência.
Vamos aguardar da Ritinha seu Manual para se viver bem no Condomínio;achei a idéia ótima!!
Abraços
Marco Aurelio
Seu blog tá ficando cada vez mais com um visual melhor.
Parabéns pelas modificações!!!
Muito bom o texto sobre vizinhança e convivência.
Vamos aguardar da Ritinha seu Manual para se viver bem no Condomínio;achei a idéia ótima!!
Abraços
Marco Aurelio
Marcelo,
Otima a ideia de de escrever o Manual de Convivência.
Vamos aguardar as sugestões e as vivências de todos.
Marconi
Postar um comentário
Otima a ideia de de escrever o Manual de Convivência.
Vamos aguardar as sugestões e as vivências de todos.
Marconi
<< Home


